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Arte decolonial e transgeneridade nas performances de Élle de Bernardini

"Assumir-se travesti no país que mais mata transexuais

e travestis no mundo é um ato corajosamente político."

Élle de Bernardini

Por: Carolina Nazatto

Élle de Bernardini (Itaqui, 1991) descreve seu trabalho como um processo de enfrentamento das dificuldades que ela encontra no seu dia a dia. Sua biografia, permeada pelas vivências como uma mulher trans, é o ponto de partida para suas pesquisas poéticas. Seja em performances, esculturas ou instalações, Élle busca a intersecção entre questões de gênero, sexualidade, política e identidade, com a história da humanidade e da arte.

É possível, portanto, fazer uma dupla leitura das temáticas abordadas pela artista em suas obras: se de um lado temos a questão de gênero, do outro temos o questionamento do modelo de sociedade atual. São duas temáticas que se cruzam, se interligam. Seguindo essa linha de raciocínio, a análise que pode ser feita de suas performances permeiam dois conceitos, a arte decolonial e a representatividade transgênera.

No artigo Transgeneridades em performances: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas (2020), Dodi Leal e André Rosa apresentam o conceito de como as performances feitas por pessoas transgêneras se conectam com a pesquisa decolonial na arte.

A arte decolonial tem como base a política e a economia periférica, aliada a estética. Se pensarmos que a América-Latina é a periferia do cânone da Arte, que tem a Europa como centro, podemos traçar um paralelo com a situação das pessoas transgêneras, que estão na periferia da sociedade que impõe a cisgeneridade como hegemonia política e social.

No campo da arte política performativa, olhando por um caráter de arte decolonial latino-americana, Élle de Bernardini apresenta duas performances: O Afogamento (2014) e Bááárbaros (2015). São obras-protesto que abordam assuntos históricos através de viés performático violento.

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Figura 1: Fotografia da performance Bááárbaros. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

Em O Afogamento, a artista trabalha a memória da história do país através de uma auto-violência. Apresentada em uma livraria na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no dia 1 de Abril de 2014, a obra marcava os 50 anos do Golpe Militar do Brasil.Ajoelhada no chão, com uma bacia de água em sua frente, Élle se auto-afogava até perder a consciência. O questionamento da performance é a busca por evocar uma memória do passado nas pessoas. A visão de uma tortura, mesmo que auto-infligida, desperta sentimentos e sensações nos espectadores. A artista busca reviver os horrores da época de chumbo que o Brasil havia passado apenas 50 anos antes e, ao partir dos sentimentos para falar de um fato, Bernardini produz uma cênica incômoda.

 

Já em Bááárbaros, a artista trabalha com um fato histórico mais recente. Após as eleições brasileiras de 2014, o país que já era dividido, se polarizou ainda mais. Élle questiona, então, a liberdade de expressão e seus desdobramentos. Segundo a própria artista, a liberdade de expressão impulsionou de algum modo a violência entre as pessoas. Ao gritar a palavra "bárbaros", até perder a voz em praça pública, Élle faz uma crítica a essa liberdade de expressão.As duas performances estão interligadas pelo conceito de abordar fatos e História, eventos do passado e política. A artista chama esse o processo de (re)significação da memória dos sentidos. É o resgate de um sentido, de uma sensação, trazendo um incômodo físico para a obra.Em Campos de Contato II - Tapas para que te quero? (2016) a violência também é o tema central da obra.

 

Se antes esta era praticada pela própria artista, como em O Afogamento, aqui Élle se dispõe a ser violentada pelo público. Sentada em uma poltrona, a artista se coloca a disposição para levar tapas na cara. Uma inscrição na parede atrás dela, escrita com giz, de próprio punho, indica que as pessoas tem que dar o tapa com toda a força. Élle aborda, aqui, a questão da banalização do mal, teoria da filósofa alemã Hannah Arendt.

 

Arendt fala da violência por uma perspectiva ético-política e não moral e religiosa. Portanto, aqui podemos ver que, se ninguém der o tapa, a performance simplesmente não acontece. Se todo mundo der o tapa, todos serão violentos e têm de lidar com as implicações disso. A questão central é como o ser humano pode ser tão maligno a ponto de violentar uma pessoa pelo simples fato de ter uma autorização para isso.​​​​​​​​​​​​​​​​​Frederico Morais, em seu texto Reescrevendo a História da Arte Latino-Americana (1997), pontua que é impossível desassociar arte e política na arte latino-americana:​"Para os artistas latino-americanos, é muitas vezes impossível abandonar o contexto em nome de uma linguagem pretensamente universal, atemporal e ahistórica. Arte e política na América Latina sempre andaram de mãos dadas". (MORAIS, Frederico. 1997, Reescrevendo a história da arte latino-americana).

 

Assim sendo, nessas performances citadas acima, podemos aplicar o conceito de Morais e os conceitos de Dodi Leal e André Rosa. Aqui, a arte política e a transgeneridade se fundem. A própria Élle cita, no texto Transgenealogia: Diário de Residência (2019), publicado na revista Performatus, que "assumir-se travesti (...) é um ato corajosamente político".

 

Essas três obras foram introduzidas aqui pois falam, além de política, sobre violência e situações mentalmente complexas. Seja uma violência do passado ou um ato direcionado a própria artista, todas elas giram em torno desse mesmo tema.Porém, em Dance With Me (2018), o discurso muda radicalmente.

Figura 2: Fotografia da performance Campos de Contato II - Tapas para que te quero? Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

Élle de Bernardini aparece na Pinacoteca de São Paulo com o corpo nu todo coberto por folhas de ouro e mel. O som ambiente é preenchido por clássicos da Bossa Nova tocado no piano. A artista dança e, em dado momento, convida pessoas para dançarem com ela.A performance em questão surge do ditado popular "não quero te ver nem pintado de ouro". O questionamento que a artista traz aqui é de aceitação, "e agora que eu estou pintada de ouro, vocês me aceitam?".​​​​​​​​​​​​​​​​

 

A performance tem como proposta quebrar um estigma da sociedade de que o corpo trans é sujo, doente, desumano, marginal. O imaginário popular sobre as mulheres transexuais ainda é construído em cima da objetificação e fetichização dos corpos. Com essa obra, Bernardini busca quebrar essa imagem.

 

Leal e Rosa, em seu artigo já citado anteriormente, dizem que ​"o percurso das transgeneridades em performance é o de reposicionamento das lutas por reconhecimento e melhorias sociais, visando subjetividades flexíveis afrontadas nas suas potências sexuais, raciais, de deficiências corporais, de classes sociais, etárias etc., e nos seus direitos e modos de existir."Dance With Me é o perfeito exemplo da performance como posicionamento de uma luta por reconhecimento e existência. Élle de Bernardini mostra que a existência de uma pessoa trans, numa sociedade conservadora, machista e cisgênera, é marginal. E que só é destinado a elas raiva e violência. Aqui, a artista propõe o toque, o afeto. Seu corpo dourado está ali, disponível para ser tocado com carinho, para que haja uma troca física.Bernardini promove, com a busca por aceitação pelas pessoas, outros tipos de existência.

 

Podemos ver, enfim, uma dualidade gritante em todas as performances citadas. Élle diz ter um duplo compromisso com suas obras: mostrar a violência humana e, então, uma solução para isso. As primeiras três performances aqui citadas estão no campo da violência, com o ímpeto de mostrar as pessoas onde elas estão errando e qual o limite para o mal. Dance With Me é a tentativa da artista de mostrar uma solução para a sociedade, uma forma de corrigir os erros violentos do passado. E a solução proposta é a aceitação, o afeto e o amor.

Figura 3: Fotografia da performance Dace with Me. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

Referências: BÁÁÁRBAROS . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 08 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 BERNARDINI, Élle de. “Porque Há o Direito ao Grito, Então Eu Grito: ‘Bááárbaros’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015. ISSN: 2316-8102. BERNARDINI, Élle de. “Ressignificação Coletiva da Memória dos Sentidos: Um Processo Artístico com Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102. BERNARDINI, Élle de. “Transgenealogia: Diário de Residência Artística”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN: 2316-8102 CAMPO de Contato II - Tapas Pra Que Te Quero?. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 08 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia.ISBN: 978-85-7979-060-7 DANCE with me. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 08 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 ÉLLE de Bernardini. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 08 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre , v. 10, n. 3, e97755, 2020 . Available from . access on 08 Oct. 2020. Epub June 22, 2020. https://doi.org/10.1590/2237-266097755. MORAIS Frederico. “Reescrevendo a história da arte latino-americana”. In: Catálogo Geral da I Bienal do Mercosul. Porto Alegre: FBAVM, 1997, pp. 7-15. Sites: BIENAL DO MERCOSUL. Laboratório Coletivo Bienal 12 recebe Élle de Bernardini - Encontro 5/5 | BIENAL 12. Disponível em: . Acesso em 03 de Outubro de 2020. ÉLLE DE BERNARDINI. Video da performance Dance With Me. Disponível em: Acesso em 30 de Setembro de 2020. ÉLLE DE BERNARNIDI. cv. Disponível em: . Acesso em 01 de Outubro de 2020. IEA. A arte como meio de reflexão sobre corpo, gênero e sexualidade. Disponível em: Acesso em 02 de Outubro de 2020. REVISTA CULT. Violência e Banalidade do mal. Disponível em: Acesso em 02 de Outubro de 2020. REVISTA HÍBRIDA. Corpo, contexto e constatação com Élle de Bernardini. Disponível em: Acesso em 05 de Outubro de 2020.

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