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Gilberto Gil, a tropicália e a arte para as massas

Por: Carolina Nazatto

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1. A cultura nacional e a arte como forma poder sobre as massas

 

Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (1992), Stuart Hall aponta que "as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações" (HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2006, p.50). A cultura nacional é um discurso que, ao produzir sentidos identificáveis sobre "a nação", busca construir identidades. 

A narrativa da cultura nacional pode ser contada através de diversos elementos, entre eles a "narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular." (HALL, 2006, p. 50) Hall coloca que a narrativa da nação fornece imagens, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam eventos que dão sentido à nação. Assim, o conceito de cultura nacional é usado como um foco de identificação e um sistema de representação (HALL, 2006, p. 58).

É importante salientar que a cultura nacional não leva em conta quão distintos são seus membros. Assim, a ideia de uma identidade unificada também é utilizada como uma estrutura de poder, já que impõe uma hegemonia cultural em detrimento dos costumes, línguas e tradições de povos conquistados e suas próprias culturas. (HALL, 2006, p. 59-60). A cultura nacional não leva em conta que as nações modernas são, todas, híbridos culturais. 

É interessante observar que criar uma ideia de identidade única de nação como forma de poder pode ser visto em diversos discursos autoritários, como no nazismo alemão e no fascismo italiano, para além da colonização em si. O uso da propaganda nacionalista nos meios de comunicação para vender um discurso cultural é uma forma de introjetar a ideia da nação única soberana em seus membros.

Walter Benjamin, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936), discorre sobre como governos autoritários utilizaram a arte e os meios de comunicação para perpetuar o seu poder. Podemos sinalizar aqui que um dos conteúdos usados por esses governos é disseminar essa ideia de identidade cultural única de nação.

"Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história" e sua função social se transforma. Agora a arte não é mais usada como algo ritual, para ser cultuada por poucos em espaços destinados a essa prática, mas com uma nova práxis: a política. (BENJAMIN, 1936, p. 171). Com as "novas técnicas [de reprodução, permite-se] ao orador ser ouvido e visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político diante dos aparelhos passa ao primeiro plano." (BENJAMIN, 1936, p. 183). Ocorre, então, a estetização da política.

Podemos ver isso de perto, mais recentemente, na Ditadura Militar Brasileira (1964 - 1985), com o governo utilizando-se dos meios de comunicação de massa (como a televisão) para perpetuar um discurso nacionalista que vendia um ideal de Brasil que todos deveriam incorporar, independente de sua identidade como indivíduo.

 

2. Brasil: ame-o ou deixe-o.

 

Em 1968, o país - que já estava sob a Ditadura Militar há quatro anos - se prepara para entrar no que ficou conhecido popularmente como os anos de chumbo: época onde se implantou o mais cruel sistema repressor que o país já viveu. Com a implementação do Ato Institucional n˚5 neste mesmo ano, direitos políticos e civis são suspendidos e se institucionaliza a tortura. Uma mudança completa na atmosfera política e cultural do país. Em seu livro Arte Brasileira na Ditadura Militar (2012), Claudia Calirman apresenta um contexto do que estava acontecendo na esfera cultural da época:

 

"A autonomia da esquerda no campo artístico e cultural durou até o final de 1968, quando o Ato Institucional n˚5 foi estabelecido pelo governo militar. O AI-5, como ficou conhecido, foi sem dúvida a mais severa de uma sucessão de medidas cada vez mais repressoras emitidas durante os primeiros anos do regime." (CALIRMAN, Claudia. Arte Brasileira na Ditadura Militar. 2012. p. 08).

 

Nos meios de comunicação, o governo militar era responsável por promover slogans como "Brasil, Ame-o ou Deixe-o" e marchinhas como "Eu te Amo meu Brasil", criada um pouco depois, em 1970, por Dom e Ravel e performada pelo grupo Os Incríveis. Como citado anteriormente, o objetivo com a propaganda do governo era criar um clima ufanista, uma imagem de um Brasil ideal que escondia o real atraso do país e os processos de repressão e censura contra quem ousava se opor à ditadura. 

Calirman ainda coloca que, nessa época, o Brasil era uma nação mudada, marcada pela desilusão com a política tradicional, pela rejeição ao regime militar e pela descrença em todas as formas de autoritarismo. (CALIRMAN, 2012. p. 09). 

Foi nesse contexto político que o país viu nascer a Tropicália, movimento de ruptura que surgiu entre 1967 e 1968, e marcou a produção artística da época. Sincrético e inovador, o Tropicalismo quebrou diversas barreiras que dominavam o país. Essa ruptura, que confrontou a ideia modernista de alta cultura x cultura de massas, tradição x vanguarda, criou um hibridismo cultural com formas populares brasileiras ao mesmo tempo que assumia atitudes artísticas experimentais que ocorriam na Europa e nos Estados Unidos (OLIVEIRA, Ana de. Tropicália. 2007). 

Como conclui Walter Benjamin em seu texto, se o governo militar usa dos meios de comunicação para estetizar a política, os artistas respondem com a politização da arte. (BENJAMIN, 1936, p. 196)

 

3. A tropicália e a arte para todos

 

A Tropicália abraçou diversas frentes, mas foi na música que encontrou sua mais popular expressão artística. É interessante observar que as ideias tropicalistas se desdobram muito além da composição musical em si (mesclando instrumentos clássicos da Bossa Nova com guitarras elétricas). É na capa dos álbuns que podemos perceber o encontro das artes visuais com a música; um espaço usado para experimentalismos visuais e gráficos que romperam com a tradição, usando elementos da pop art (importados da arte contemporânea norte-americana) para criar uma nova linguagem na produção brasileira. As capas dos discos, então, se tornam uma plataforma para os artistas dialogarem diretamente com a massa.

Poucos meses antes da imposição do AI-5, em Maio de 1968, Gilberto Gil lançaria seu segundo disco, intitulado "Gilberto Gil". Um marco do movimento tropicalista, sua capa (imagem 1) é uma composição emblemática, com muitas camadas conceituais, assinada por Rogério Duarte, Antônio Dias e David Drew Zingg.

Duarte, em entrevista ao jornalista Ricardo Muniz, coloca que

 

"o momento internacional na era do Tropicalismo me parece basicamente uma visão terceiro mundista, um momento de anticolonialismo, uma abertura muito grande para o pensamento negro/africano, ou seja, o etnocentrismo branco/oficial começa a nível de estética a se esboroar..." (DUARTE, 1987).

 

É importante frisar que na mesma época em que a Tropicália se formava, começava na Inglaterra os chamados Estudos Culturais, com Stuart Hall (e seus estudos decoloniais), como um dos seus principais pensadores. É possível fazer uma leitura a partir da crítica decolonial na composição em si. Ao colocar Gil, um artista negro, vestido de militar, os artistas se apropriam de um símbolo de poder colonial e o coloca nas mãos (e na imagem) do colonizado.

As cores também não são escolhidas ao acaso. A combinação geométrica de verde e amarelo domina a composição, invocando a rigidez de um governo autoritário, que é interrompida de forma contrastada por formas orgânicas em vermelho. O vermelho - cor usada por movimentos políticos de esquerda - sobrepõe as cores da bandeira nacional, como se estivessem se movendo, dominando aos poucos a composição. Uma referência ao momento político brasileiro já citado anteriormente.

A influência da pop art é clara, mostrando a vontade dos artistas tropicalistas de trazer para a arte brasileira um visual mais alinhado com os movimentos artísticos internacionais. Na Bossa Nova, as capas primavam pela contenção e simplicidade, ao passo que na Tropicália é possível ver a transição para uma estética alegórica e híbrida: há uma mistura de diversos elementos e meios, como as próprias estruturas das músicas criadas pelo tropicalismo. (BARAT, Aïcha Agoumi de Figueiredo. Capas de Disco: Modos de Ler. 2018, p. 68). Aqui, podemos ver o uso dos grafismos, inspirados na estética dos quadrinhos, além das fotomontagens, muito presentes em obras do movimento estadunidense.

Com inspiração em imagens banais do dia a dia e do kitsch, trazendo a discussão entre alta cultura x cultura da massa, e com as lições do Neoconcretismo assimiladas, surge no campo das artes o que foi chamado de Nova Figuração. A capa de Gilberto Gil se encaixa diretamente neste novo momento da arte nacional. Há o diálogo com as vertentes internacionais (pop art) e o desejo de situar o Brasil no campo das vanguardas com uma representação visual que não fosse só brasileira, como foi no Modernismo no início do Século XX, mas internacional. (BARAT, 2018, p. 69)

Os artistas, na busca por essa nova arte brasileira-internacionalizada, extrapolam os espaços tradicionais das artes e passam a pensar na interatividade da obra para além do público seleto que frequentava museus e galerias. Além disso, passam a incluir questões políticas em suas criações - um traço importante da arte contemporânea. A escolha de usar as capas dos discos como meio não só foi reflexo desse novo momento, mas uma forma de criar um diálogo com as próprias experimentações musicais da Tropicália.

Ao se envolverem com a cena musical, os artistas conseguiram trazer mais visibilidade para sua produção. Os discos, diferentemente das exposições em museus, não ficaram reservados para poucos, mas penetraram as ruas, a rotina, a vida e a casa de milhares de pessoas. Abordar o tema da decolonialidade e da luta contra o sistema repressor da época foi um meio de criar um diálogo direto com a massa. A escolha de assimilar a estética da pop art não foi meramente uma vontade de fazer parte de um movimento internacional, mas um meio de criar um discurso-visual que se conectava mais facilmente com a população.

Volto a Walter Benjamin: ao verem os meios de comunicação serem dominados pelo governo autoritário, os artistas responderam com a politização da arte. Não mais a arte reservada aos museus, mas disseminada em larga escala nas novas mídias como capas de discos
 

Referências: BARAT, Aïcha Agoumi de Figueiredo. Capas de Disco: Modos de Ler. Rio de Janeiro, 2018 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 1936. CALIRMAN, Claudia. Arte Brasileira na Ditadura Militar. Rio de Janeiro, 2012. DUARTE, Rogério. Momentos do Movimento. Entrevista concedida a Ricardo Muniz, em 1987. Último acesso em: 04 de Jul de 2021.  HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, 2006. OLIVEIRA, Ana de. Tropicália. Último acesso em: 04 de Jul de 2021.

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