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Apropriação da Arte Clássica nas obras de Marcelo Tinoco

Por: Carolina Nazatto

Fonte: Zipper Galeria

Muito se fala nas discussões da arte contemporânea sobre apropriação. Utilizar elementos prontos, retirá-los de contexto e, a partir disso, criar algo novo. Essa discussão no campo das artes surge no ready-made de Marcel Duchamp e segue acontecendo nas produções atuais.

Virgínia Cândida Ribeiro aponta em seu artigo Apropriação na arte contemporânea: colecionismo e memória (2008) que muitos artistas, influenciados pelas teorias pós-estruturalistas de Roland Barthes, procuraram por imagens ou idéias prontas para criar novas poéticas. Dentro desse conceito podemos encontrar a técnica da colagem, que acontece quando elementos são retirados de seu contexto originário, são manipulados e reorganizados. Permite-se, então, contar novas histórias, alterar simbologias e dar novos significados a imagens produzidas por terceiros.

Se na Arte Moderna a colagem utilizava as montagens analógicas com recortes de revistas e jornais, papéis diversos e fotografias, agora as ferramentas digitais levam a discussão de apropriação ao extremo, com a possibilidade de manipular as imagens de formas mais drásticas do que no passado. Agora, é possível alterar a imagem para além do recorta e cola.

Dentro desse campo das artes digitais, é muito comum encontrarmos artistas que utilizam elementos emblemáticos da História da Arte, transformando-os em obras neosurrealistas. Segundo o Manifesto Neosurrealista (2008), escrito por Claudio Miklos, os artistas neosurreais usam "imagens emplastadas em telas, as formas reinventadas em computador, as cores, tons e movimentos manipulados em pincéis ou palcos, e em todos os meios possíveis – tudo isso realizado sem resistência à representação pictórica." Os artistas, então, se apropriam com frequência de imagens muito conhecidas e as transformam em novas produções, com novos significados e novas linguagens, unindo "o uso do pincel e da tinta, a manipulação digital e a constante valorização das formas." (MIKLOS, 2007, Manifesto Neosurrealista).

Na série "Museu de Novidades", Marcelo Tinoco (São Paulo, 1967) utiliza dessa técnica para criar obras com dualidades, opostos e ressignificação de imagens. Tinoco usa "um livre contato entre o antigo e o contemporâneo, o ideal e o real, o sagrado e a profanação das normas, um mundo eterno a às avessas" (BETTS, 2020, Museu das Novidades).

Neste trabalho, o artista utiliza fotografias que fez em viagens, obras de arte e pintura digital para criar suas obras. Dentro dessa série, que apresenta paisagens e retratos, dois trabalhos se destacam pela escolha de elementos emblemáticos da Arte Clássica. Vênus e Ophelia, ambas produzidas em 2020, podem ser entendidas como releituras neosurrealistas das obras O Nascimento da Vênus (1483-85) de Sandro Botticelli e Ophelia (1851-2) de Sir John Everett Millais.

Além da apropriação, é possível fazer, também, uma leitura decolonial na obra do artista. É a partir desses dois pontos principais que analisarei mais profundamente as duas obras citadas.

Em Vênus (2020) Figura 1, o observador reconhece de forma rápida e clara a personagem principal ali reproduzida, já impregnada no inconsciente coletivo. O artista transporta a obra renascentista para a América do Sul, brinca com o cânone e se apropria de um símbolo da hegemonia artística européia, colocando-o no meio da floresta tropical. É possível fazer uma ligação com o mito brasileiro da Iara, conhecida também como a Mãe D'água, e com Iemanjá, orixá do Candomblé e da Umbanda. As três figuras femininas são personagens que tem uma relação com a água e são dotadas de grande poder.

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Figura 1: Venus (2020) Marcelo Tinoco. Fonte: Zipper Galeria

Se, na obra de Botticelli, Vênus está cercada por figuras míticas, aqui é adornada por bananeiras e folhas de coqueiros. A concha, simbologia clássica do mito original, é substituída por uma botânica típica da região amazônica, a vitória-régia.

Além dessa mudança de ambiente, Tinoco altera discretamente a figura feminina. Os clássicos cabelos ruivos surgem com um leve tom esverdeado. O colo é adornado por duas tranças e, no rosto, percebemos a adição de um pouco de "maquiagem".

Como já citado anteriormente, Nancy Betts escreve que Tinoco profana as normas clássicas da história da arte. O artista retira, assim, a obra original de seu contexto e dá uma nova roupagem a ela. Ele faz o caminho inverso do que foi feito na colonização, quando elementos das sociedades dominadas eram incorporados pelos colonizadores em sua sociedade. Aqui, é o colonizado que se apropria do colonizador, transpondo um símbolo europeu para o território latino-americano.

Em Ophelia (2020) Figura 2, a ideia central é a mesma. Aqui, a obra pré-rafaelita de mesmo nome também é manipulada e recortada, com parte dela (a personagem principal) sendo inserida em um contexto de flora tropical. Na tela do final do século XIX, Millais ilustra um tema que é comum aos artistas do movimento Pré-Rafaelita, o romance medieval. Ophelia, personagem de Hamlet, se afoga no rio, envolta por uma vegetação de cores vivas, contrastando com o tom azulado da vestimenta que boia na água. Os artistas deste movimento davam "uma luminosidade que lembrava a arte do início do Renascimento" (FARTHING, 2011, p. 294).

Figura 2: Ofélia (2020) Marcelo Tinoco. Fonte: Zipper Galeria

Tinoco altera a ambientação, trocando a vegetação original do rio Hogsmill, em Surrey, por uma profusão de folhagens tropicais. É possível, também, ver claramente o tratamento digital em cima da mulher representada, que ganha definição em meio a diversas plantas aquáticas.

Nas duas obras (e na série como um todo), a cartela de cores evidencia o verde, que domina a obra quase completamente e também faz o papel de criar um plano de fundo uniforme, destacando ainda mais o elemento apropriado pelo artista.

As duas obras escolhidas para análise apresentam uma dualidade entre si, argumento que está presente em todo o trabalho do artista. Se de um lado temos o nascimento, do outro temos a representação da morte. É como se as duas obras contassem a mesma história, começo e fim.

Ao usar elementos emblemáticos da arte clássica inseridos em uma nova linguagem, Marcelo Tinoco cria uma alternativa ao cânone, fomentanto um debate que se mostra cada vez mais fundamental: a tomada da narrativa artística pela periferia. Aqui, o artista adapta a arte produzida pelo centro, retirando-a do contexto original, modificando assim seus significados. O artista propõe uma manipulação digital da história, originando-se, então, uma nova imagem a partir da apropriação.

Referências: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: Os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. RIBEIRO, Virgínia Cândido. Apropriação na arte contemporânea: colecionismo e memória. Anap, Florianópolis, ago. 2008 APROPRIAÇÃO . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 24 de Set. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 MIKLOS, Claudio. A Bizarra Regurgitação da Sardinha Neosurrealista, 2008. BETTS, Nancy. Museu de Novidades. 2020. Disponível em: . Acesso em 20 de Set. 2020 ZIPPER GALERIA. Marcelo Tinoco. Disponível em . Acesso em: 20 de Set. 2020 ARTS & CULTURE. The Birth of Venus. Disponível em: . Acesso em 20 de Set. 2020 ARTS & CULTURE. Ophelia. Disponível em: . Acesso em 20 de Set. 2020 ART AND POPULAR CULTURE. Neosurrealism. Disponível em . Acesso em: 25 de Set. 2020 GELEDES. Iemanjá - lenda, mito e sincretismo religioso. Disponível em: . Acesso em 25 de Set. 2020

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