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Escrever para me encontrar



Hoje acordei sem despertador - o que está sendo muito comum desde que me mudei para Portugal - e o primeiro pensamento que me invadiu a mente, antes mesmo de abrir os olhos, foi um grito ensurdecedor. Dizendo assim parece ruim, mas juro que não foi. Deixe-me explicar.

Nos últimos dias de Janeiro me vi, com quase tudo que é meu embalado, no meio do aeroporto de Guarulhos. Depois de quase dois anos de preparação, planilhas e sonhos empacotados, a mudança havia se tornado real. Eu sei, eu sei, parece clichê demais, mas não tem outra forma de falar se não o inevitável 'fui de mala e cuia para outro país'. A sensação foi deixar uma vida para trás; deixar a minha vida antiga para trás e decolar rumo ao (quase) desconhecido. Acontece que essa sensação me trouxe muitas questões íntimas, profundas e - de certa forma - reveladoras demais. Minha vida mudou tanto, e eu? Como fica o 'eu' dentro dessas novas perspectivas?

Minhas roupas parecem não caber mais, meu cabelo parece não mais emoldurar tão bem assim meu rosto. Meu rosto parece meio distorcido nos reflexos que vejo por aí. Pode parecer uma crise de identidade, mas essa foi vivida durante os tempos de isolamento social. Dessa vez é diferente. É como se meu eu do passado simplesmente não coubesse mais nessa nova vida. Dito isso, você pode imaginar o quanto essa mudança toda afetou diretamente o meu trabalho. Não só esteticamente, mas na forma como eu quero fazer.

Lembro perfeitamente de quando era uma pré-adolescente vivendo em uma cidade do interior e meu sonho era ser escritora. Não importava muito bem do que, de que forma, ou para onde, mas eu queria escrever. Preencher as páginas em branco com meus pensamentos era o que me completava; o que me deixava realizada de uma forma que nada mais o fazia. Mas a vida, senhoras e senhores, ela acontece e deixa seus sonhos cobertos de pó.

Décadas se passaram, muito mais do que eu gostaria, e a cada réveillon eu me afastava mais desse fazer. A terapia veio no final do ano passado, escancarando tantas coisas internas e, entre elas, essa carol-que-queria-escrever começou a gritar, a cantar, a pular e a dançar para chamar a minha atenção. E eu olhei para ela; olhei para ela perplexa ao constatar que ela ainda estava ali. No começo foi um olhar de canto, meio disfarçado. Mas hoje, com o grito que me acordou meio de sobressalto, eu pude olhar diretamente para aquela carol que ainda segurava algumas folhas em branco só esperando para serem preenchidas.

O dia seguiu normalmente; café, cigarros, emails respondidos, testes de composição de colagens que precisam ser finalizadas, músicas sendo porcamente cantadas e um big mac de almoço por que eu mereço. Foi só depois de comer, com o calor do sol entrando pela janela da sala, que consegui parar de fato e voltar a olhar - não sem receio - para o que me acordou. O grito continuava ecoando, me deixando inquieta demais. E aí que me sentei na frente do computador e, sem pensar demais, decidi resolver essa questão de uma vez por todas.

A página em branco estava em minha frente mais uma vez. Escrevi sem pensar, sem editar, sem voltar para ler o que havia acabado de colocar ali. Foi tudo de uma só vez, como arrancar um band-aid; um grito que estava entalado há muito mais tempo do que deveria estar.

Escrevi; escrevi como não escrevia há anos. E me encontrei novamente.

Nessa nova vida, nessa nova casa, me encontrei não numa nova eu, mas em mim mesma de um passado distante, na versão que eu havia escondido há quase vinte anos.

Assim, resolvi voltar a preencher esse espaço com meus pensamentos traduzidos; documentando meus processos , meus dias e minha vida, em palavras.


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